Prefeituras gastam R$ 802,6 mil com medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19 em Piracicaba e Limeira

Prefeituras gastam R$ 802,6 mil com medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19 em Piracicaba e Limeira
De acordo com o laboratório responsável pelo medicamento, não há dados que comprovem a eficácia da Ivermectina no tratamento precoce da Covid-19 — Foto: Divulgação/TV Vanguarda

As prefeituras de Piracicaba (SP) e Limeira (SP) gastaram ao menos R$ 802,6 mil com a compra de medicamentos sem eficácia contra a Covid-19. As administrações relataram as aquisições de ivermectina e azitromicina no relatório de despesas para combate ao coronavírus. Outros governos municipais da região também admitem a distribuição destes medicamentos contra o coronavírus e um morador relatou prescrição de um deles na rede privada.

O valor equivale a mais da metade do montante que a Prefeitura de Piracicaba vai gastar para custear oito leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em um hospital da cidade por três meses.

O levantamento do G1 não leva em consideração unidades desses remédios que já estavam em estoque antes da pandemia ou compras deles para outros fins, uma vez que estas drogas são voltadas para outros tipos de tratamento.

Em Piracicaba, o portal de receitas e despesas de combate à pandemia relata duas compras com emissão de nota empenho - ato de compromisso de aquisição e pagamento -, dos dias 2 e 9 de outubro de 2020, o primeiro de 10 mil comprimidos de Azitromicina 500 mg, com valor total de R$ 17.700,00 e o segundo para entrega de 200 mil comprimidos do mesmo medicamento, ao custo de R$ 380.000,00.

Já em Limeira, notas de liquidação - oficialização de pagamento - de 1º de março de 2021 apontam compras de 199,9 mil comprimidos de Azitromicina 500 mg ao preço de R$ 353.911,50 e de 30 mil comprimidos de Ivermectina 6 mg ao custo de R$ 50.997,00. No caso da Ivermectina, é apontada como fonte do recurso transferência e convênios estaduais.

No caso de Piracicaba, o prefeito Luciano Almeida (DEM) chegou a anunciar em 15 de janeiro que a administração passaria a liberar remédios de "prevenção" contra Covid-19, mediante prescrição médica e consentimento do paciente. Na ocasião, ele informou que o objetivo era evitar que os casos chegassem a estados graves.

"Nós acreditamos que é uma forma de dar uma alternativa a mais à sociedade e, quem sabe, se estiverem corretos até um dia que haja um protocolo fiscal sobre isso, a gente diminua a incidência da piora do quadro das pessoas que contraíram o Covid-19", justificou, à época.

Questionada novamente pelo G1 sobre a disponibilização de hidroxicloroquina, ivermectina ou azitromicina, a Prefeitura de Piracicaba informou no dia 26 de março que "possui alguns dos referidos remédios em seu estoque, porém, cabe ao médico a prescrição e ao paciente querer receber o tratamento".

"Tão logo haja um protocolo autorizando a utilização de qualquer medicamento para o tratamento inicial da doença, a prefeitura recomendará aos seus profissionais da saúde a adoção desses medicamentos", acrescentou.

A Prefeitura de Limeira, informou em nota que desde o início da pandemia, disponibiliza todos os medicamentos para tratamento dos sintomas de Covid-19 no início da infecção e confirmou que nesta lista estão incluídos hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina.

"No entanto, é importante esclarecer que a responsabilidade por receitar tais medicamentos cabe ao médico responsável pelo paciente, conforme prevê o Conselho Federal de Medicina. Ao poder público, cabe disponibilizar tais medicamentos, como é feito no Ambulatório Referência de Combate ao Coronavírus (ARC), assim como são disponibilizados testes rápidos para detecção da doença, no início dos sintomas, também com embasamento médico", acrescentou.

Outras cidades

Outras cidades da região já anunciaram medidas semelhantes. No dia 2 de janeiro, o prefeito de Nova Odessa (SP), Cláudio José Schooder, o Leitinho (PSD), anunciou como primeira medida de enfrentamento à pandemia de Covid-19 estudos e eventual distribuição gratuita, a moradores com 50 anos ou mais, do medicamento ivermectina que, segundo a nova gestão, "já é distribuído em outras cidades brasileiras e que alguns médicos também apontam ter efeito positivo sobre a imunidade das pessoas".

Questionada novamente pela reportagem, a prefeitura respondeu em 25 de março que ivermectina, azitromicina e hidroxicloroquina são medicamentos que sempre fizeram - e fazem - parte dos estoques da Farmácia Central do Município.

"Eles só são distribuídos gratuitamente aos pacientes do SUS na cidade quando são prescritos, sozinhos ou em combinações diversas, por um médico da rede municipal de saúde, conforme avaliação e diagnóstico do profissional. Desde que assumiu, em janeiro, a nova gestão da pasta jamais distribuiu tais medicamentos na eventual forma de um 'kit profilático'", acrescentou.

Já a Prefeitura de Engenheiro Coelho (SP) informou no dia 17 de março que passaria a distribuir um kit de medicamentos para tratamento precoce da Covid-19.

O kit tem cinco remédios: prednisona, vitamina D, zinco, azitromicina e ivermectina. A prefeitura informou que adquiriu 500 kits para distribuir aos pacientes com sintomas gripais ou a que aguardam a realização do teste para a confirmação da doença.

"Eu tratei muitos pacientes com essa rotina e tivemos sucesso. Então, apelidamos de 'kit Covid', mas na verdade são medicamentos comprados para ficar à disposição da farmácia, do pronto socorro, de atendimento, mas com prescrição médica, a critério do médico. Então, essa medicação não é distribuída para a sociedade. Então, a medicação está à disposição, com anuência e o carimbo médico, com avaliação dele", informou à época, o prefeito da cidade, Zeedivaldo Alves Miranda (PSB).

A Prefeitura de Rio das Pedras (SP) também confirmou ao G1 que tem um protocolo no qual disponibiliza azitromicina, ivermectina e prednisolona a pacientes com prescrição médica, exceto quando há falta da medicação. A entrega ocorre quando o morador tem diagnóstico positivo para Covid-19 ou apresenta suspeitas com sintomas acentuados. A administração também informou que desde o início deste protocolo, em dezembro de 2020, foram distribuídos 125 kits com estes remédios.

"Não há distribuição preventiva de 'kit covid', porém, os distribuídos na SMS (Secretaria Municipal de Saúde) seguem a conduta médica, uma vez que não existe medicamento eficaz para a Covid. São medicamentos utilizados para tratar o quadro clínico do pacientes e as possíveis complicações", apontou a prefeitura.

O governo municipal ainda informou que, através de monitoramento diário, consegue acompanhar esses pacientes, e que até o momento os que fizeram uso da medicação em casa evoluíram para cura.

A Prefeitura de Mombuca (SP) informou que distribui ivermectina, azitromicina e vitaminas como complexo B a pacientes com diagnóstico confirmado pela doença e mediante prescrição médica. "A distribuição dos medicamentos já era um protocolo seguido pela administração anterior. A atual gestão da Secretaria de Saúde continuou com as medidas", comunicou.

A pasta acrescentou que adotou tais medidas "diante da urgência da necessidade de buscar alternativas de tratamento". Questionada sobre o acompanhamento destes pacientes submetidos a este tratamento, a administração informou que todos os que testaram positivo são acompanhados por monitoramento via ligação telefônica.

Rede particular

Um morador de Piracicaba que pediu para não ser identificado também relatou que um médico que o atendeu no hospital da Unimed da cidade prescreveu Ivermectina devido a sintomas suspeitos de infecção pelo coronavírus.

"Meu pai estava com sintomas, estava com tosse e coriza, e aí procurou a Unimed, que é onde ele tem plano, e fizeram o teste, só que o teste foi ficar pronto depois de uns três dias. Mas na hora, ali, esse médico já pegou e deu a receita da Ivermectina, dois comprimidos ao dia, está lá [na receita], que é um remédio sem eficácia comprovada e que também faz mal o excesso. Aí eu achei um absurdo", contou.

Em nota, o Hospital Unimed Piracicaba comunicou que atua com protocolo específico, preconizado pelos órgãos oficiais de saúde. E que sem a identificação do paciente não poderia acessar o prontuário e se manifestar sobre o caso tecnicamente.

Sem eficácia comprovada

A farmacêutica Merck, responsável pela fabricação da ivermectina, informou em comunicado emitido em 4 de fevereiro que não há dados disponíveis que sustentem a eficácia do medicamento contra a Covid-19. A ivermectina é um vermífugo usado para promover a eliminação de vários parasitas do corpo.

A empresa destaca três pontos da análise:

  • Não há base científica para um potencial efeito terapêutico contra Covid-19 em estudos pré-clínicos;
  • Não há evidência significativa para atividade clínica em pacientes com a doença;
  • E há uma preocupante ausência de dados sobre segurança da substância na maioria dos estudos.

Já um estudo publicado em 4 de setembro de 2020 na revista científica The Lancet aponta que não há benefício comprovado no uso do antibiótico azitromicina no tratamento de pacientes graves da Covid-19. Os resultados foram obtidos em uma parceria entre pesquisadores de oito instituições brasileiras.

A azitromicina é um medicamento usado em infecções bacterianas. Ele tem sido comumente utilizado durante o tratamento da doença causada pelo Sars CoV-2. Em alguns casos, tem sido associado à cloroquina, medicamento que também não teve eficácia comprovada contra a Covid, inclusive segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

"Nós não apoiamos 'kit covid', nós não apoiamos tratamento precoce. Não tem uma única declaração institucional do Conselho Federal de Medicina apoiando tratamento precoce. Essa decisão pertence ao médico brasileiro, dentro de sua autonomia, no caso concreto junto ao seu paciente", afirmou ao Fantástico o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, em reportagem veiculada no último dia 28 de março.

Na mesma semana, a Associação Médica Brasileira (AMB) comunicou que uso destes remédios para este fim deve ser banido.

"A autonomia médica não passa pela liberdade do médico prescrever aquilo que é ineficaz, aquilo que não funciona e aquilo que tem risco", afirmou na reportagem Cesar Eduardo Fernandes, presidente da AMB.

Efeitos colaterais

Especialistas acendem um sinal de alerta sobre os efeitos colaterais dessas drogas, que podem estar levando pacientes para a fila de transplantes. Em São Paulo, já pode ter provocado a morte de três pessoas.

O Hospital das Clínicas de Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) confirmou em março um caso de hepatite medicamentosa que gerou a necessidade de transplante.

Prefeituras terão de prestar contas
Em nota ao G1, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo informou que os recursos repassados pelo governo estadual aos municípios no decorrer da pandemia visam auxiliá-los no custeio da assistência aos casos de Covid-19 e combater a pandemia, especialmente com o custeio de leitos e atendimento hospitalar, cabendo também às prefeituras prestar contas dos recursos públicos utilizados.

"Não existe, até o momento, estudo publicado e revisado sobre a eficácia de nenhum dos citados medicamentos para uso contra o coronavírus, muito menos para 'tratamento precoce'", alertou.

A pasta observou que no estado os gestores de saúde deliberaram pela não recomendação do uso da cloroquina/hidroxicloroquina em casos leves e moderados da doença devido à insuficiência de evidências científicas que comprovem a eficácia dos medicamentos nos tratamentos. "Também não há recomendação de uso em casos graves, exceto em estudos clínicos, seguindo critério médico e consentimento do paciente", acrescentou.

"Vale lembrar que a automedicação é contraindicada em qualquer hipótese e, especialmente para Covid-19, é necessário haver embasamento científico e prescrição médica para segurança dos pacientes", finalizou.

Fonte: Rodrigo Pereira, G1 Piracicaba e Região