Ver meu vídeo antivacina no celular de um jovem morto por Covid foi um baque para mim, diz médico italiano
SÃO PAULO — Aos 47 anos, o médico italiano Pasquale Bacco, ficou conhecido mundialmente por ser um dos principais líderes do movimento antivacina na Itália. Em cerca de dois anos, visitou 300 praças no país para realizar seus discursos negacionistas, que incluíam frases como "há água de esgoto nas vacinas", "os caixões de Bergamo estão todos vazios" e "ninguém morreu de Covid". No início deste ano, veio a público dizer que se arrependera da postura e passou a defender a imunização. Em entrevista ao GLOBO por Skype, de Nápoles, ele conta o episódio que o levou a mudar de ideia de forma tão drástica. Explica por que defendia o movimento antivacina e como se tornou um de seus principais líderes e afirma que, hoje, seu objetivo é passar a mensagem que o vírus mudou e que a vacinação é o caminho para o retorno a uma vida normal.
Por que o senhor defendia o discurso antivacina?
Eu defendia os antivacina porque eu realmente acreditava nisso. Eu tinha tantas perguntas [sobre a vacina], mas ninguém escutava nem dava respostas. Naquela época, todos os médicos tinham dúvida. Além disso, em especial na fase inicial da pandemia, eu vi muitas pessoas morrerem, a maioria idosos com muitas comorbidades. Nunca tinha visto jovens morrerem. Por isso eu dizia todas essas coisas. Eu apenas contava o que eu estava vendo.
O que fez o senhor mudar de ideia?
No final do ano passado, eu estava trabalhando na UTI e vi coisas muito feias. O que realmente me fez mudar ideia foi quando um jovem de 29 anos morreu de Covid e tinha fotos e vídeos meus antivacina no celular. Isso foi muito triste para mim. Um baque. Eu falei com a família dele, que não me agrediu. Pelo contrário. Foram muito serenos. Mas foi uma experiência complicada. É claro que você se sente culpado, então é necessário mandar uma mensagem diferente ou ao menos de dizer a verdade.
E como foi sair do movimento e mudar o discurso?
Uma coisa que me chateou muito é que os meus colegas antivacina me pediram para fingir que eu não tinha visto aquilo. Isso não está certo. Esse é o motivo pelo qual eu saí. As pessoas que estavam mais próximas de mim disseram para eu continuar a subir no palco, manter o mesmo discurso e fingir que eu não tinha visto nada. Ali eu comecei a ver um pouco de má fé nessas pessoas. Eu era uma daquelas pessoas que subia no palco e dizia 'beijem-se', 'abracem-se', 'façam amor'. Mas quando vi certas coisas na unidade de terapia intensiva, eu não podia mais falar isso. Então preferi encerrar completamente a experiência antivacina e alertar as pessoas, porque nós precisamos ser honestos.
No mundo antivacina, existem muitas pessoas que seguem isso porque realmente acreditam nisso ou porque têm medo [da vacina], mas também tem uma parte que gosta que as coisas continuem sempre iguais, que instrumentaliza o movimento para chegar a outros fins. O movimento antivacina na Itália está fortemente associado a uma política de extrema direita, até um pouco violenta. Basta lembrar daquela famosa manifestação em Roma, quando lojas e sindicatos foram atacados. Isso aconteceu porque tem muita política dentro do movimento. Os antivacina precisam se livrar dessas pessoas.
Como é sua relação com as pessoas antivacina hoje?
Quanto mais uma pessoa te ama, mais ela te odeia quando se sente traída. Eu fui ameaçado e ofendido. Por outro lado, muitas pessoas seguiram o meu caminho. Elas se perguntaram 'por que o Bacco mudou de ideia?', 'por que ele viu outras coisas?' e entenderam. Eu fiquei muito feliz com isso. Eu quero bem aos antivacina. São pessoas que por muito tempo estiveram muito próximas de mim. Nós viajamos, comemos juntos, dormimos no mesmo local e passamos pelas mesmas experiências e dificuldades. Mas é claro que os antivacina hoje não gostam de mim.
Como o senhor se tornou um líder desse movimento?
Eu participei de uma pesquisa que mostrou que o vírus já estava na Itália em 2019. Então comecei a ganhar destaque na imprensa. Eu era médico e eram poucos os médicos com um discurso parecido com o meu [no início da pandemia, Bacco defendia o tratamento precoce. Afirmava que a Covid-19 era uma doença perfeitamente tratável e que não matava]. Uma coisa leva a outra e quando você vê, está em um palco falando para 20 mil pessoas.
Antes da Covid-19, o senhor não era antivacina. Quais eram as dúvidas que o levaram a duvidar dessa vacina especificamente?
Eu passei nove anos nos Estados Unidos estudando o HIV. Para alguém com esse histórico, ver uma vacina pronta para o coronavírus, que é um vírus com semelhanças com o HIV, em tão pouco tempo, parecia realmente impossível. Então eu estava muito relutante. A partir disso, começaram a surgir várias dúvidas, que fizeram com que eu me tornasse antivacina.
Eram três principais questões: quanto tempo a proteína spike da vacina fica no organismo; também queríamos saber se o DNA poderia ser danificado de alguma forma pela vacina e, a terceira questão, era como era possível criar uma vacina em tão pouco tempo, considerando que ainda não há vacina para o HIV.
Hoje, nós temos resposta para isso. Concluímos que o DNA não é danificado e que a proteína spike desaparece depois de dez dias e não dois anos, como pensávamos. Além disso, depois de um ano e meio de vacinação e 160 milhões de doses aplicadas, nós não vimos todos esses danos que acreditávamos que poderiam ser causados pela vacina. Eu vi um ou outro problema no coração, mas todos tratáveis.
Eu não digo que tudo é lindo e tudo é ótimo. Mas é uma balança. De um lado, há uma doença que, para quem não viu, eu garanto que é muito feia. Do outro lado, tem a vacina. Se eu tiver que escolher entre os dois, eu escolho mil vezes a vacina.
Eu convido as pessoas a escolherem bem porque depois de dois anos, precisamos voltar a viver ou então ficaremos doentes por outras coisas. Não podemos continuar a viver em guerra contínua na praça, com os jovens presos em casa. Mas eu sou contra qualquer forma de discriminação e acredito que precisamos respeitar todas as escolhas, incluindo das pessoas que não querem se vacinar. Também acredito que se a pessoa entende que a vacina não mata, não tem problema tomá-la. O desafio é superar o medo, o engano. No final, precisamos encontrar um ponto de encontro, um ponto de diálogo.
O que o senhor diria hoje às pessoas que não querem se vacinar porque acreditam que a vacina faz mal?
No início, eu só via idosos e pessoas muito doentes morrerem e era isso o que eu contava. Mas as coisas mudaram. Na Itália, até a semana passada, vimos muitos jovens saudáveis morrerem de Covid-19. A maioria dessas pessoas não estava vacinada. A vacina não protege da infecção, mas protege da doença grave e isso é muito importante. A vacina não é uma coisa simples, mas a doença é muito pior. Se não existisse a Covid, eu diria "ok, não precisa disso". Mas a Covid é uma doença ruim. Ela leva à morte de uma forma muito feia. E nós não podemos fingir que isso não existe. A vacina, neste momento, demonstrou que funciona. Hoje, a vida é quase normal na Itália e ainda estamos no inverno. Isso não era possível no ano passado.
O senhor tomou a vacina?
Sim, tomei as duas doses. Só não tomei a terceira porque ainda não passou o período necessário.
O número de pessoas antivacina arrependidas está aumentando?
Existem dois cenários. De um lado, tem muitos antivacina que estão começando o esquema vacinal com a primeira dose. Do outro, tem muitas pessoas que não querem tomar a quarta dose. Tem muita confusão. Mas apesar de eu achar que é necessário tomar a vacina, eu continuo crítico e lutador. Eu acredito que é inaceitável ter que tomar uma vacina a cada três meses. Precisamos encontrar uma solução.
O senhor teve sua licença de médico suspensa, como foi isso?
Eu fui suspenso por causa das coisas que eu disse nas praças e na televisão. Na época, achei que era injusto. Mas quando eu mudei de ideia, eu aceitei. Porque se você acredita que errou, como eu, é preciso aceitar a punição para este erro. Senão é muito fácil. Então eu aceitei, não entrei com recurso. Posso dizer que paguei com a minha pele por todas as coisas que eu fiz e falei, afinal, estou sem salário por sete meses. Mas espero poder voltar a praticar a medicina, em julho, quando acaba a suspensão. Também espero encontrar um mundo mais sereno. Eu acredito que não podemos continuar uns contra os outros. Eu desejo que, no futuro, nós aprendamos a ser mais compreensivos, em ambas as partes.
Fonte: Giulia Vidale/O Globo