Lula terá que reconstruir ministério da Ciência e reverter bloqueio de fundo que pode causar apagão, avaliam especialistas
Tornar a atuação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) efetiva nos próximos quatro anos do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é um desafio que exigirá recursos, e parte deles estão bloqueados por determinação do atual presidente Jair Bolsonaro (PL).
Para evitar uma espécie de 'apagão' na ciência brasileira nos próximos anos, especialistas ouvidos pelo g1 lembram que é preciso enfrentar um cenário desfavorável, como a proposta de Orçamento para 2023 enviada por Bolsonaro que prevê cerca de R$ 17 bilhões para as áreas - um valor próximo ao que era investido há 15 anos.
Como diagnóstico dos desafios e sugestão de pontos de atenção, especialistas apontam as seguintes prioridades para a próxima gestão:
- desbloqueio de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT);
- recomposição do orçamento e da gestão dos órgãos ligados ao MCTI;
- novas estratégias para o desenvolvimento científico e tecnológico;
- reajuste de bolsas de pesquisa.
- Otimismo e bloqueio de fundo
Cientistas e pesquisadores veem a vitória de Lula com um respiro para a ciência e tecnologia, mas citam que ter dinheiro é fundamental para que os investimentos na área não fiquem estagnados.
“As evidências apontam que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve ter um olhar muito aguçado para educação e ciência, porque ele já fez isso”, disse a presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professora da Unifesp, Helena Nader.
O retrospecto de governos anteriores do petista também é lembrado por Renato Janine, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “O Lula tem ao seu favor o fato de que ele governou muito bem nessa área de ciência, tecnologia e inovação. O que ele vai fazer agora é complicado, porque nós estamos em uma situação econômica desastrosa”, afirma.
Para os especialistas, o ponto de atenção está nos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que sofreram um bloqueio até 2026 por conta de uma Medida Provisória (MP) assinada por Bolsonaro em agosto deste ano.
O FNDCT é principal mecanismo de financiamento da área, usado por universidades e instituições ligadas à ciência, além de empresas do setor privado que investem em inovação.
Neste ano, R$ 3,5 bilhões de um total de R$ 9 bilhões foram contingenciados pelo governo federal. Para 2023, a previsão orçamentária prevê um bloqueio de R$ 4,2 bilhões, o que representa 42% do fundo. Pela MP, o fundo só poderá ser usado em sua totalidade em 2027.
Nesse ritmo, a expectativa é de uma diminuição ainda maior nos investimentos em universidades públicas, responsáveis por mais de 90% da produção científica do Brasil. “Se essa questão não for resolvida, não vai ter ciência”, avalia Nader.
A equipe de transição do governo Lula trabalha para tentar reverter os efeitos da MP e se apoia em uma lei, aprovada pelo Congresso em 2021, que proibiu o contingenciamento do FNDCT.
Há também uma hipótese de que a MP, assinada por Bolsonaro, possa perder a validade (caduque) antes de ser votada por deputados e senadores – o prazo termina no início de fevereiro de 2023, na volta do recesso parlamentar.
“O presidente [Lula] já disse que vai acabar com o contingenciamento do FNDCT. E eu acredito que ele não vai ter grandes dificuldades por conta dessa lei”, disse ao g1 o professor, físico e ex-ministro Sérgio Machado Rezende.
Problemas de gestão
Rezende, que foi ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações de 2005 a 2010 nas duas primeiras gestões de Lula, vem colaborando para o novo governo com a elaboração de um diagnóstico, apontando as prioridades na área para o novo governo. Ele fez esse mesmo trabalho em 2002, quando Lula foi eleito pela primeira vez.
“A ciência implica não é só em financiar pesquisa, mas fazer com que as instituições do Ministério da Ciência e Tecnologia trabalhem como já trabalharam no passado”, afirmou.
No diagnóstico, foram apontados problemas de funcionamento, gestão e mudanças nas estruturas de órgãos de ciência e tecnologia ligados ao governo federal, além da necessidade de recompor o orçamento do MCTI, alvo de desfinanciamento há pelo menos 7 anos, segundo estudo do Observatório do Conhecimento.
"Em várias entidades ligadas ao MCTI, houve mudança na estrutura e nós vemos que a mudança não foi boa. Vamos ter propostas de reestruturação administrativa e de gestão já nos primeiros dias de governo”, projetou Rezende.
Exemplos de corte de verbas não faltam: em 2021, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) teve o menor orçamento dos últimos 10 anos, o que deixou por um fio os monitoramentos de biomas, como Cerrado e Amazônia, e da previsão do tempo e o clima, para fornecer dados ao governo sobre estiagem em momentos de escassez hídrica.
“Falava-se até que não se pagaria a conta de luz do Inpe”, relembrou Renato Janine, da SBPC.
Outro órgão ligado ao MCTI que sofreu com falta de dinheiro na gestão Bolsonaro foi o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) que chegou a interromper a produção de radiofármacos, usados para diagnóstico de câncer no Brasil.
Para Sérgio Rezende, o avanço da ciência e tecnologia também passa pela escolha dos nomes que vão comandar esses e outros órgãos que estão no guarda-chuva do ministério da Ciência e Tecnologia.
“O desafio é ter recursos para esses institutos e ter eles funcionando dentro da normalidade. Ou seja, eles terem dirigentes escolhidos pela comunidade com a participação do governo”, disse o ex-ministro, que citou ainda a necessidade de elaborar um plano de ação com metas para a ciência para os próximos anos.
"No passado, os recursos, ao invés de serem usados de maneira aleatória, foram usados dentro de uma estratégia. É preciso voltar a ter isso. Nós já não temos um plano há pelo menos 7 anos. Não só os recursos foram diminuindo, mas deixou de ter estratégia. Essa é uma área para o futuro, ela tem que ter um plano".
Reajuste de bolsas
Dentro da comunidade acadêmica, a expectativa é de que o novo governo dê uma atenção maior para a Capes e o CNPq, as duas agências federais de fomento à pesquisa ligadas aos ministérios da Educação e ao da Ciência e Tecnologia.
A partir delas, estudantes podem conseguir bolsas para se dedicar exclusivamente à pesquisa dentro das universidades nos estudos no mestrado e no doutorado, por exemplo.
Desde 2013, as bolsas de pesquisa não são reajustadas e já perderam quase dois terços do poder de compra, de acordo com a Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG).
O ponto é considerado crucial entre especialistas para incentivar os estudantes a se dedicar exclusivamente a projetos de pesquisa e, assim, incentivar o desenvolvimento da ciência dentro das universidades.
“Ciência necessita de recursos humanos. Não adianta você só ter investimento na ciência se você não tiver isso acoplado com a formação de recursos humanos”, afirmou a presidente da ABC, Helena Nader.
Durante os dois primeiros mandatos de Lula, as bolsas de pesquisa receberam três reajustes. Em 2003, quando o petista entrou na Presidência, a bolsa de mestrado era de R$ 724 e de doutorado, R$ 1.073. Em 2010, no último ano do governo, os valores saltaram para R$ 1,2 mil e R$ 1,8 mil, respectivamente.
O último reajuste aconteceu durante o governo de Dilma Rousseff, quando as bolsas de mestrado passaram para R$ 1,5 mil e de doutorado, R$ 2,2 mil, valores que permanecem até hoje.
Fonte: Marina Pagno, G1