Prefeitura de SP começa nesta segunda a reter cópia da receita de vacinados da Covid-19 para evitar fraudes
A Prefeitura de São Paulo começa nesta segunda-feira (31) a reter cópias das receitas e atestados de pessoas com comorbidades que tomarem a vacina contra a Covid-19 na cidade, para evitar fraudes na fila da imunização.
A medida foi anunciada no sábado (29) pelo secretário municipal da Saúde, Edson Aparecido, e acontece depois da reportagem do G1 que mostrou a venda ilegal de receitas médicas no Centro de São Paulo para furar a fila da vacina.
O objetivo, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), é apurar a veracidade dos documentos apresentados e evitar fraudes contra os grupos prioritários na vacinação.
De acordo com Aparecido, a retenção das receitas será por amostragem, para que sejam auditados esses atestados e laudos, com o objetivo justamente de impedir fraudes como as flagradas pelo G1, buscando os autores do crime e impedindo que pessoas sem doenças furem a fila da imunização.
“As unidades de saúde irão reter uma cópia dos atestados e receitas médicas de algumas doenças mais comuns, como hipertensão, para que se possa fazer depois uma averiguação da veracidade desses documentos, para que uma eventual fraude seja bloqueada”, disse Aparecido.
“Serão alguns tipos de doença com cópia retida porque, nos casos de comorbidades mais raras, é fácil constatar se o paciente tem aquela doença ou não e a origem da receita. Nós estamos criando essa logística para que esse tipo de fraude não volte a acontecer”, completou o secretário.
Aparecido também afirmou que a médica da rede municipal de saúde que aparece na assinatura da receita fraudada comprada pelo G1 no Centro de São Paulo afirmou que desconhecia o uso do registro dela no esquema e vai registrar queixa na Polícia Civil contra os fraudadores.
"A cópia da receita será feita para que, em seguida, a gente possa fazer a pesquisa seja da compra do remédio, da procedência do atestado e sobre o médico que deu o atestado, através do CRM", declarou Edson Aparecido.
Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que a retenção passa a ser adotada após sugestão do Ministério Público (MP) e que o processo de retenção das cópias será feito em todas as unidades de saúde utilizadas na campanha de imunização.
"Assim que detectado qualquer tipo de irregularidade, será iniciado um processo civil/criminal, com encaminhamento para providências do MP", informou a pasta.
Investigação policial
A Polícia Civil anunciou neste sábado(29) que também identificou o suspeito de vender falsos atestados médicos no Centro de São Paulo para quem quer furar a fila da vacinação. O inquérito policial para investigar o crime foi instaurado nesta sexta (28) após publicação da reportagem.
O homem, de 35 anos, já tem passagem anterior pelo mesmo crime, venda de atestado médico falso, em agosto de 2018. Ele ainda não foi localizado pelos policiais.
“Nós sempre agimos ali, toda área do 1ºDP e da Seccional Centro. E diante dessa demanda maior de atestados médicos, por conta da prioridade da vacinação, nós também fizemos um trabalho mais abrangente justamente para reprimir esse tipo de crime", afirmou o delegado Roberto Monteiro, titular da 1º Seccional Centro.
Os documentos fraudados têm sido comercializados em meio à imunização dos grupos prioritários com comorbidades [pessoas com doenças crônicas] que foram inseridos no Plano Nacional de Imunização (PNI), definido pelo governo federal.
“Nós instauramos o inquérito policial e em tempo recorde a Polícia Civil de São Paulo já identificou o autor por uma ferramenta de investigação que é uma das mais modernas do mundo com o auxílio das imagens da reportagem”, ressaltou Monteiro.
O delegado também ressaltou que a Polícia Civil participa da operação Marco Zero, que começou há dois meses e engloba a região central da cidade, em parceria com diversos órgãos, como a Polícia Militar, Secretaria de Justiça, Guarda Civil Metropolitana, Subprefeitura da Sé e Secretaria de Desenvolvimento Social.
A compra e venda de atestados médicos é considerada um crime e os infratores podem pegar até 5 anos de prisão. O médico que emite um atestado com teor falso comete o crime do artigo 302 do código penal, que é falsidade de atestado médico e a pena pode chegar a 1 ano de prisão.
Quando o atestado tem assinatura e o carimbo falsos, o acusado responde pelo uso de documento falso, o crime é inafiançável, com pena de 1 a 5 anos de prisão. Já o comprador responde por uso de documento falso e a pena também varia de 1 a 5 anos.
Flagrante
O G1 acompanhou, por dois dias seguidos desta semana, a movimentação e a oferta de atestados na Praça da Sé, um dos principais cartões postais da cidade, e na Praça do Carmo, perto da unidade do Poupatempo, a poucos metros de distância.
Para ter acesso ao documento falso basta circular pelas ruas da região para ser abordado por plaqueiros, que são os intermediários. Eles chamam os pedestres para oferecer fotos 3x4 e cópias de xerox.
Os valores para conseguir furar a fila da vacina podem chegar até R$ 400 pelo kit completo, dependendo do que foi solicitado. Para conseguir a imunização, além do atestado com a declaração da doença, também é possível apresentar um laudo médico ou receita da medicação (veja a lista completa das doenças abaixo).
O G1 comprou um atestado com nome fictício, por R$ 130, para verificar se existiam falhas no sistema. O falso atestado não foi utilizado para imunização, apenas como teste.
A equipe do G1, sem se identificar, questionou um plaqueiro que oferecia atestados como conseguir o documento para tomar a vacina contra a Covid-19. Em seguida, o homem pediu para aguardar na Praça do Carmo e chamou um colega, que negociou a venda.
O vendedor, que se identificou como Alan, disse que o documento era feito por uma médica que trabalha na rede pública municipal. Ele apenas questionou qual o CID da doença que devia constar do documento. “Você só precisa marcar seu nome completo e a doença que você quer”, disse.
O vendedor garantiu que o atestado era “quente” e podia ser utilizado sem receio.
“Você vai gastar um troco, R$ 130, mas tem o carimbo da médica, o CRM, tudo certinho. É quente, CRM você pode puxar, existe. Vem o nome do hospital tudo certinho, a própria médica trabalha no hospital lá”, justificou.
Ele ainda explicou que fica com a menor parte do dinheiro.
“O preço é único, nós ganhamos R$ 20 de comissão e o restante fica tudo pra ela [médica]”, argumentou.
Em seguida o homem pediu para esperar em uma lanchonete enquanto buscava o atestado para “não dar bandeira”. Quando voltou, deu sinal para que a negociação fosse encerrada no Metrô, para não ter problemas com a polícia.
Dentro da estação, ele reforçou que o atestado era verdadeiro. “É UBS da prefeitura. Aqui não tem golpe, não, pode ver que é carimbo, e não xerox. Se quiser puxar o CRM dela, pode puxar, aqui não é golpe, não.”
O atestado veio com o Código Internacional da Doença (CID), o carimbo e o CRM (o registro profissional) de uma médica da UBS Jardim IV Centenário, que fica na região de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo. O registro profissional da médica é verdadeiro.
O G1 não conseguiu localizar a profissional nem seus advogados. Mas a prefeitura disse que ela desconhece a prática (veja a nota mais abaixo).
Em seguida, após a equipe do G1 analisar o documento, o pagamento foi realizado. “Se der algum problema, você vem aqui que eu te devolvo seu dinheiro”, afirmou o vendedor.
No dia seguinte, o G1 retornou ao local, mas não localizou o homem.
Nem a presença de profissionais de segurança intimida a ação dos criminosos, que ocorre a poucos metros de distância de carros da Polícia Militar (PM) e da Guarda Civil Municipal (GCM).
Com o falso atestado em mãos, a equipe do G1 foi até a Unidade Básica de Saúde (UBS) Edu Chaves, na Zona Norte de São Paulo, questionou se o documento tinha validade para receber a vacina e recebeu uma resposta positiva. “Pode vir. Quando liberar a idade, a senhora vem”, disse um funcionário, ao checar o falso atestado.
Para deixar claro mais uma vez: ninguém foi vacinado com esse atestado falso.
Investigações
Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Saúde, disse que os dados que constam do atestado conferem com os da médica. "Ela desempenha atividade na UBS Jardim Centenário como generalista e desconhece a situação exposta. A médica fará um boletim de ocorrência. A Secretaria Municipal da Saúde também oficiará o delegado-geral da Polícia Civil para acompanhar as devidas investigações do caso."
A Secretaria Municipal da Saúde disse ainda que os profissionais das unidades de saúde da capital foram orientados para checar o documento de identificação original e conferir atentamente os dados dos munícipes para a imunização contra a Covid-19.
"Em caso de dúvida sobre a veracidade de algum documento apresentado, a orientação é enviar para a averiguação do Programa Municipal de Imunizações. Os profissionais também foram orientados a fazer o registro no sistema Vacivida em tempo real, a fim de evitar casos de vacinação em pacientes já imunizados. A pasta esclarece que, até o momento, não possui números de ocorrências de documentos falsificados", diz a nota.
Questionada, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) disse que as polícias Civil e Militar realizam ações constantes na região e que prendeu no dia 11 de maio um homem envolvido com a venda de atestados falsos. Na ocasião, foram apreendidos atestados irregulares já assinados.
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) afirmou que irá investigar cerca de 100 CRMs de médicos que mais emitiram laudos e atestados em todo o estado para vacinação de pacientes com comorbidades. O pedido de apuração foi feito pela Secretaria Estadual da Saúde. De acordo com o Cremesp, um único CRM consta como tendo emitido mais de 300 atestados solicitando imunização contra a Covid-19 (leia nota abaixo).
“Nós atuamos na questão ética, e não na questão penal. O atestado pode ser considerado falso mesmo quando um médico exista, esteja registrado e atuando legalizado, mas se o teor dos dados não for verdadeiro, ele é um atestado falso. Ou então quando subscrito por alguém que não é médico”, afirma Angelo Vattimo, diretor do Cremesp.
De acordo com ele, o Cremesp enfrenta dificuldades em realizar apurações próprias e as denúncias costumam chegar através de terceiros, já que o conselho de medicina deve receber o documento em mãos, seja laudo médico ou atestado, para iniciar as investigações.
Durante a vacinação, o documento não é retido pelas unidades de saúde e os funcionários anotam somente o CRM do médico e a comorbidade declarada.
A ilegalidade também é cometida por quem compra o documento para tentar antecipar o recebimento da vacina. Os vendedores e compradores podem responder pelo crime de falsidade ideológica.
Sobre as irregularidades cometidas pelos compradores, Vattimo lamenta. “Isso é lamentável, eu acho que isso mostra uma falta de civilidade, uma falta de consideração para com o próximo. Isso é um absurdo, acho que todos vão ter que esperar a sua vez. Cada um tem que ter consciência.”
De acordo com o Cremesp, se comprovado que os médicos emitiram atestados falsos, os profissionais podem ser penalizados e ter o registro cassado, após a abertura de uma sindicância e finalização de um processo ético.
Nota do Cremesp
"O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) informa que está investigando casos relacionados à emissão de atestados para vacinação contra Covid-19 e as investigações tramitam sob sigilo determinado por lei.
O Cremesp esclarece ainda que a emissão de laudos, relatórios e atestados é um ato médico e deve ser feita pelo médico assistente e com base em consulta prévia e no histórico do paciente. Antes de emitir um documento atestando a condição de saúde do paciente, é necessário checar prontuário, exames anteriores e medicações em uso.
O Código de Ética Médica, em seu artigo 80, veda a expedição de documento médico sem ter praticado ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou que não corresponda à verdade. As penalidades decorrentes de infração ética vão de uma advertência confidencial em aviso reservado à cassação do exercício profissional".
Lista de comorbidades autorizadas
O governo de SP segue os critérios de comorbidade definidos pelo Ministério da Saúde, para pessoas com as seguintes doenças:
- Insuficiência cardíaca
- Cor-pulmonale e hipertensão pulmonar
- Cardiopatia hipertensiva
- Síndrome coronariana
- Valvopatias
- Miocardiopatias e pericardopatias
- Doença da Aorta, dos Grandes Vasos e Fístulas arteriovenosas
- Arritmias cardíacas
- Cardiopatias congênitas no adulto
- Próteses valvares e dispositivos cardíaco implantados
- Diabetes mellitus
- Pneumopatias crônicas graves
- Hipertensão arterial resistente
- Hipertensão artéria estágio 3
- Hipertensão artéria estágio 1 e 2 com lesão e órgão alvo
- Doença cerebrovascular
- Doença renal crônica
- Imunossuprimidos (inclui câncer)
- Anemia falciforme
- Obesidade mórbida
- Cirrose hepática
- portadores do vírus HIV.
Fonte: G1 SP — São Paulo