Crise no MEC: 'O ministro da Educação foi totalmente omisso no Enem', afirma ex-presidente do Inep
BRASÍLIA — Demitido em fevereiro da presidência do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pela organização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Alexandre Lopes afirmou em entrevista ao GLOBO que o ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi "totalmente omisso" na organização do Enem do ano passado, em meio à pandemia da Covid-19, classificando de "covarde" a atitude do ex-chefe. Disse ainda que o planejamento do exame deste ano está "bastante atrasado", com risco de ser adiado para 2022 e falta de recursos.
O Enem de 2020 foi realizado em janeiro e fevereiro deste ano, mas teve números recordes de abstenção e estudantes relatando terem sido impedidos de fazer a prova porque as salas já estavam lotadas. O exame de 2021 tinha cronograma previsto para novembro ou dezembro, mas ainda não teve data confirmada.
Lopes decidiu romper o silêncio depois que a atual gestão do Inep divulgou uma nota, na última sexta-feira, criticando políticas implementadas por ele.
O Enem é o principal exame conduzido pelo Inep. O ministro se envolveu na organização?
Foi uma relação bastante atípica. Com o ministro Abraham (Weintraub), em 2019, eu tinha contatos regulares sobre o Enem. A gente trocava informações pessoalmente ou pelo telefone. Em 2020, houve muito pouco questionamento do ministro (Milton Ribeiro) em relação ao Enem. Nas reuniões que a gente tinha, nos despachos, eu comentava o que estava acontecendo sobre o Enem. No primeiro dia da aplicação do exame, que tivemos os casos de algumas pessoas que não conseguiram fazer as provas, o ministro se mostrou bastante irritado à noite, quando chegou ao Inep para a coletiva. E falou que não tinha sido comunicado sobre aquilo, o que é uma mentira, porque eu falei as medidas que a gente estava tomando. Mas o que aconteceu foi que, no dia seguinte, segunda-feira de manhã, pedi formalmente uma reunião com ele para falar do Enem. Ele recusou a reunião, através das secretárias. Aí tivemos o segundo dia de execução do Enem. Na outra segunda-feira, pedi novamente uma reunião presencial com ele e ele recusou de novo. Na segunda recusa, ele falou que nós íamos ter um despacho semanal. No despacho semanal, ele não apareceu, pediu que o executivo me recebesse. O Enem acontecendo no Brasil, em meio a uma pandemia, com todas as dificuldades, e o ministro se recusou a me receber. Eu só conseguia falar com ele por WhatsApp, mandei mensagens.
Qual era o teor das mensagens?
Como ele não me recebeu no despacho no dia 21 de janeiro, mandei mensagem afirmando que havia passado informações para o secretário-executivo sobre o Enem e estava à disposição para falar sobre a aplicação da prova que aconteceria no domingo. Ele não me respondeu. Mandei outra após o segundo dia do Enem dando detalhes, ele não perguntou nada sobre o exame. Depois, mandei uma mensagem dizendo que estava preocupado com a reaplicação do Enem em Manaus e que estava difícil conseguir locais para realização da prova, ele simplesmente me respondeu "ok, vai dar certo". Foi essa a orientação dele para mim. Foi omisso. O ministro simplesmente fugiu do Enem.
Essas recusas atrapalharam na condução?
O impacto prático é que eu tive que tomar as decisões sozinho em relação ao Enem.
Qual era a justificativa do ministro para não te receber ?
Eu não sei, talvez ali ele tenha decidido me substituir. Acho que ele queria, com covardia, (passar a ideia) "não tenho nada a ver com esse negócio do Enem. Deu errado, eu estava alheio. Ninguém me falou nada". Acho que ele queria fugir da responsabilidade.
Em relação à operacionalização do Enem, você conseguiu obter alguma decisão do ministro?
Tive que decidir sozinho. O máximo que eu fazia era comunicar ao secretário-executivo e ao adjunto. Como eu não estava falando com o ministro, só mandava as mensagens para ele. (Havia) várias questões administrativas paradas há meses que eu falei que estavam gerando problemas para o Inep. Havia 25 indicações (abertas) para Comissão Técnica de Avaliação (CTA). Eu estava com 25 pessoas a menos e eu pedi para nomear e o ministro deixou parado quatro, seis meses.
Você falou que teve dificuldade de acesso durante a realização do Enem, mas, antes disso, ele participou da preparação?
Não. Foi omisso, totalmente omisso. Mandei um ofício mostrando a deficiência de Orçamento para esse ano. Ele resolveu simplesmente deixar de fazer quase tudo que o Inep ia fazer. O orçamento para o Enem era cerca de R$ 200 milhões e o Enem custa cerca de R$ 700 milhões. Ao contrário da covardia e da incompetência do ministro Milton Ribeiro, se eu fosse (igual a) ele, ano passado não tinha Enem. Tive que conseguir um valor extra por causa da Covid. Se ele for seguir o Orçamento desse ano, são R$ 200 milhões para o Enem, não tem exame por esse orçamento.
Você se arrepende de ter realizado o Enem no meio da pandemia?
De jeito nenhum. Pelo contrário, ainda bem que fizemos. Iam falar o quê? Se deixasse para agora, abril foi um mês terrível da pandemia no Brasil.
Você mencionou que fez alertas em relação ao orçamento para o Enem deste ano. Você considera que a prova está em risco?
O planejamento do Enem deste ano está bastante atrasado, tanto da execução quanto da elaboração da prova. Acho que há um risco de jogarem o Enem para o ano que vem utilizando como desculpa a pandemia. Mas se você perguntar hoje se tem prova pronta, contrato, eles não vão ter para informar. Apesar de toda incompetência do atual presidente e a falta de discernimento por parte do ministro, a equipe técnica do Inep é capaz de fazer. Se eles não atrapalharem, o Enem sai, mas estão atrasados.
Em nota divulgada na sexta, o Inep diz que sua decisão de realização do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) de modo censitário e a versão seriada do Enem contrariavam parecer da área técnica.
A mudança do Saeb foi uma portaria do ministro Abraham. Então ele (Milton Ribeiro) está matando um projeto do governo Bolsonaro. O Enem seriado que ia começar esse ano era uma novidade do governo, esse cara matou (o projeto) porque não gosta de mim. Esse foi um projeto que começou em 2019 a partir de uma discussão de tentar fazer uma avaliação durante todo o ensino médio, e não só no terceiro ano. Levamos ao ministro, explicamos o custo e a dificuldade. O ministro Abraham mandou fazer. No âmbito do Inep começamos a conversar com a equipe técnica sobre isso. O projeto foi sendo construído junto com a equipe técnica.
Mas houve resistência da equipe técnica?
Teve gente a favor e gente contra. Houve resistência? Sim, mas houve gente que gostou, que também aprovou e acho que tinha que seguir adiante. Foi um processo de construção. Houve uma nota que mostrava pontos críticos da implementação. Mas (nota) contrária, não.
Não é desejável que antes de lançar a política esses pontos críticos sejam pacificados?
Os pontos críticos se referiam à implementação do projeto. Uma coisa é a ideia, outra é a implementação. São coisas diferentes. Foi uma decisão minha comunicada e aprovada pelo ministro da Educação à época e ele me deu essa autorização, para partir para a operacionalização para definir isso precisava de grande articulação e conversa com a sociedade e é isso que esse ministro não faz.
Há uma divergência entre gestões. A nota divulgada pelo Inep traz uma crítica muito dura à sua gestão, que acabou sendo substituída. Você disse que o ministro Milton Ribeiro está destruindo um projeto do governo Bolsonaro, mas ele foi colocado no cargo pelo presidente. Você considera que ele tem esse respaldo?
As únicas novidades em termos de avaliação foram o Enem Digital e o novo Saeb, mas eles foram implementados pelo governo Bolsonaro. Então, ele está criticando um projeto que foi aprovado pelo governo Bolsonaro. Eu apresentei pessoalmente o projeto do Enem Digital ao presidente Bolsonaro e o presidente deu carta branca para seguirmos adiante. Em relação ao Enem seriado e ao novo Saeb, não é um projeto de gestões anteriores de outro governo. Então ele tem que responder por que acha que o presidente Bolsonaro estava errado. Ele é um sujeito que está marcado por não fazer, está cancelando coisas que foram apresentadas no próprio governo Bolsonaro. O presidente apresentou um projeto ao país que era o Enem Digital e o novo Saeb, através de seu ministro (Abraham Weintraub), escolhido por ele, e ele (Milton Ribeiro) agora está desdizendo isso.
Quando você foi retirado do cargo, nos bastidores havia uma avaliação de que o ministro queria promover uma mudança na área de avaliação do Ensino Superior. Nessa semana, também foi exonerada a coordenadora-geral de Avaliação dos Cursos de Graduação e Instituições de Ensino Superior, Sueli Silveira, e houve acusações de que há um desmonte no Inep. Você concorda?
Em relação à avaliação do Ensino Superior, temos documentado em processo desde o ano passado que apresentamos várias propostas ao MEC. Documentadas, com reuniões feitas. A questão da avaliação in loco virtual começou na minha gestão, está documentado em processo. Foi algo que minha equipe na época pensou. Tudo que a gente propunha ao então secretário da Seres (Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior) e atual presidente do Inep (Danilo Dupas) era rechaçado. Há inúmeras propostas feitas pela equipe técnica e sentaram em cima, por isso substituíram a pessoa que tomava conta da área.
Fonte: Paula Ferreira/O Globo