Ministério de Damares faz cartilha com informações falsas sobre maconha

Ministério de Damares faz cartilha com informações falsas sobre maconha
Brasil - Brasília - 03/12/2020 - Presidente Jair Bolsonaro particpa, acompanhado da primeira dama, Michelle Bolsonaro, participam da cerimônia de Comemoração do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência e do Dia Internacional do Voluntário. Na foto, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves Fotos de Jorge William/ Agência O Globo Foto: Jorge William / Agência O Globo

BRASÍLIA — O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), comandado pela ministra Damares Alves, elaborou e já está divulgando uma cartilha sobre o uso da maconha para fins recreativos e terapêuticos com informações falsas e fora de contexto.

Com 31 páginas, a cartilha tem prefácio assinado pela secretária nacional da Família, Angela Gandra, e diz que há “em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 399/2015 e seu substitutivo, que propõem a autorização do plantio em larga escala da maconha e sua comercialização em todo o território nacional".

No entanto, nenhum substitutivo foi oficialmente apresentado. O MMFDH foi questionado sobre o caso e enviou ao GLOBO uma minuta (redação ainda não definitiva de um texto) de substitutivo, de autoria do deputado federal Luciano Ducci (PSB-PR).

Como na tramitação do projeto no site da Câmara também não há nenhum substitutivo, o GLOBO entrou em contato com o gabinete do congressista, que confirmou que o texto não foi apresentado, apenas elaborado e submetido a contribuições de colegas.

Já o projeto que está em tramitação pretende liberar o comércio de remédios “que contenham extratos, substratos, ou partes da planta denominada Cannabis sativa, ou substâncias canabinoides" e "desde que exista comprovação de sua eficácia terapêutica, devidamente atestada mediante laudo médico para todos os casos de indicação de seu uso".

Apesar disso, o documento oficial do ministério diz que o uso terapêutico da maconha voltou a ser tema de discussão no Brasil, "baseado em informação científica de baixa qualidade e, sobretudo, em interesses financeiros de determinados grupos que pretendem estabelecer o negócio da maconha no país".

A cartilha pontua ainda que o uso de medicamentos à base de maconha “já está devidamente regulamentado no Brasil" por meio de duas portarias da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Diz também que os procedimentos para incluir esses remédios no Sistema Único de Saúde (SUS) “já estão em curso no Ministério da Saúde”.

Citação a documento da ONU

Com 66 referências bibliográficas, o material do MMFDH diz que vários países tentam "vender a maconha como tendo efeito medicinal" para obter liberação "para fins entorpecentes”. O elo teria sido feito pela Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE) da ONU (Organização das Nações Unidas).

Intitulado “Relatório do Conselho Internacional de Controle de Narcóticos para 2018” (em inglês, “Report of the International Narcotics Control Board for 2018”), o texto tem 144 páginas e fala, principalmente, da venda de remédios com canabidiol – princípio ativo da Cannabis sativa (maconha) – e seus impactos na saúde pública.

rsos na saúde pública”, além de “poderem aumentar o uso não medicinal de maconha entre adultos e contribuir para a legalização do uso não medicinal da droga, a partir do enfraquecimento da percepção pública sobre seus riscos”. 

O grupo da ONU ainda diz que “os governos devem garantir que seus programas não resultem na legalização de fato de cannabis para uso não medicinal”. No entanto, a JIFE não vincula a comercialização de maconha para uso medicinal ao objetivo de "obter liberação para fins entorpecentes”, como aponta o MMFDH.

Risco de transtornos e tentativas de suicídio

A cartilha associa a maconha à criminalidade, violência, baixos índices de desenvolvimento pessoal e profissional, separações conjugais e outros problemas individuais e coletivos. Junto ao texto, há desenhos para ilustrar os alertas. Uma das ilustrações é a de uma grávida fumando maconha.

O documento diz que, “no estado do Colorado (EUA), 70% dos estabelecimentos regulamentados pelo governo local para vender maconha e produtos derivados recomendam o uso de maconha medicinal para evitar os enjoos durante a gravidez".

"Esta cartilha deseja corresponder ao clamor das famílias, que desde os primeiros momentos de existência desta secretaria, solicitaram a nós um cuidado especial para impedir o acesso das drogas aos lares e o desencadeamento de suas tristes consequências: dependência, evasão escolar, destruição dos laços familiares, danos à saúde, suicídio, pobreza e risco de morte", diz Angela Gandra no texto do MMFDH.

"Como vemos que falta ainda uma boa informação para orientar as famílias sobre a gravidade do uso recreativo, apresentado como inofensivo, bem como sobre a eficácia do uso terapêutico, vimos muito oportuno publicar material técnico que possa auxiliar seu discernimento e ajudar também outras famílias", completa a secretária.

Ao mencionar o artigo “O uso da cannabis como um indicador de transtorno bipolar precoce e tentativas de suicídio” (em inglês, “The Use of Cannabis as a Predictor of Early Onset of Bipolar Disorder and Suicide Attempts”), publicado no Centro Nacional para Informação Biotecnológica (NCBI, na sigla em inglês), a cartilha do MMFDH relaciona o uso da cannabis a casos de suicídio, mas sem entrar em detalhes.

O artigo, no entanto, diz em sua introdução que “o uso da cannabis é associado com o risco do aumento das tentativas de suicídio. Porém, o efeito da cannabis (…) não está claro.” Ao fazer a correlação entre maconha e suicídio, a pesquisa se atém ao caso específico de pessoas com transtorno bipolar.

Em resposta ao GLOBO, o MMFDH disse que o artigo citado tem “diversas referências científicas que fazem associação entre uso de cannabis e suicídio em pacientes com transtorno bipolar”. A pasta transcreveu quatro passagens que tratam desse vínculo em nota ao jornal.

“Há uma associação entre a idade precoce de início do TB [transtorno bipolar] e tentativas de suicídio”, diz o artigo em excerto selecionado pelo MMFDH. “As descobertas de uma associação entre o uso de cannabis, idade precoce de início e tentativas de suicídio podem ser tomadas como um suporte para a visão de que a cannabis afeta negativamente o curso do transtorno”, diz outro trecho.

O ministério diz que “há diversas outras referências na literatura que comprovam essa correlação” e  que, "além dos Transtornos Bipolares, o risco de suicídio é aumentado também para pacientes com outros tipos de transtornos mentais, que fazem uso de maconha”.

Ministério fala em redução de QI

O MMFDH também relaciona uso da cannabis com redução de QI (quoeficiente de inteligência) e cita outro artigo que consta na bibliografia: "Usuários de maconha apresentam declínio neuropsicológico da infância à meia-idade" (em inglês, “Persistent cannabis users show neuropsychological decline from childhood to midlife”). 

O estudo, que foi contestado por outros cientistas em plataforma de publicação, vincula o uso da cannabis (e a suposta redução de QI) a condições socioeconômicas adversas. 

“Evidências recentes sugerem que ficar na escola pode melhorar o quoeficiente de inteligência, e usuários de cannabis tendem a receber menor escolaridade do que os não usuários”, diz a pesquisa.

Já o MMFDH afirmou em nota ao GLOBO que “questões socioeconômicas podem de fato afetar diversas condições cognitivas, porém o que o estudo em questão apresenta, é a influência do consumo de maconha na redução do QI”. De acordo com a pasta, isso é "evidenciado" em "análises estatísticas”.

“Os membros do estudo com dependência mais persistente de cannabis mostraram maior declínio de QI. Por exemplo, os membros do estudo que nunca usaram cannabis experimentaram um ligeiro aumento no QI, enquanto aqueles que foram diagnosticados com dependência de cannabis (…) experimentaram quedas de QI”, diz passagem destacada pela pasta em resposta à reportagem.

O declínio pode chegar a até 6 pontos de QI, segundo a pesquisa. “Os resultados das análises para dependência persistente de cannabis e uso regular persistente de cannabis foram semelhantes”, diz o trecho selecionado. “A dependência persistente de cannabis esteve associada a maior declínio na maioria dos subtestes”, detectou a pesquisa, segundo o ministério.

Fonte: Maurício Ferro e Renata Mariz/O Globo.com