Destransição aquece debate sobre mudança de gênero

Destransição aquece debate sobre mudança de gênero
Keira Bell, uma ativista da 'destransição' no Reino Unido Foto: Picasa / Reprodução BBC

SÃO PAULO — O crescente número de relatos de pessoas trans — no Brasil e no exterior — que realizaram procedimentos para mudar de gênero e se arrependeram aquece o debate sobre a transição, em especial de crianças e adolescentes. Um caso emblemático é o da britânica Keira Bell, que no início do ano passado, aos 23 anos, processou o sistema de saúde público britânico, conhecido pela sigla em inglês NHS, sob a alegação de que a equipe médica deveria ter questionado mais sua decisão de fazer a transição do sexo feminino para o masculino.

Ela iniciou o processo de transição aos 16 anos e atualmente se identifica com o sexo feminino, o mesmo de seu nascimento. O episódio da jovem não é isolado. Nas redes sociais, é possível encontrar grupos e perfis com relatos de “destransição”. Especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que esses casos existem, mas são raros, especialmente no Brasil. Em geral, estão associados a falhas no atendimento médico.

No Brasil, assim como em outras partes do mundo, é reconhecido o direito das pessoas que sentem um desconforto permanente e completo entre o sexo biológico e a identidade de gênero de fazer a transição. Garantir que possam realizá-la de forma assistida, segundo os especialistas, é uma vitória importante para o seu bem-estar, uma conquista que deve ser mantida apesar de campanhas contrárias defendidas por alguns setores da sociedade.

O debate que a “destransição” levanta não é contrário ao direito de transição. Está restrito ao exame de eventuais falhas e excessos no processo de acompanhamento, tema de grande importância, uma vez que algumas intervenções não são totalmente reversíveis em casos de arrependimento.

Faltam pesquisas

Há poucos dados científicos disponíveis sobre “destransição” – um grande problema que deveria receber mais atenção no Brasil e no exterior. As poucas estatísticas existentes indicam que cerca de 2% das pessoas transgênero mudam de ideia e desejam voltar ao gênero de nascimento.

Um estudo recente realizado pelo Instituto Fenway e pelo Hospital Geral de Massachusetts mostrou que 13% das pessoas transgênero, em algum momento, decidiram “destransicionar”. Desse total, apenas 2,4% atribuíram a decisão a uma dúvida estritamente pessoal sobre sua identidade. Mais de 80% das que se arrependeram disseram que foram pressionadas por fatores externos, o que deixa clara a necessidade de aumento do combate ao preconceito. Mas, independentemente da causa, o resultado mostra que, de cada 100 pessoas, 13 não estavam preparados para a transição.

Quadro brasileiro

De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), casos de desistência costumam acontecer ao longo do acompanhamento multidisciplinar, feito antes do início da transição física.

— Aqui no Brasil, os casos de “destransição” de pessoas atendidas no sistema público são raríssimos. No sistema privado, isso pode acontecer com mais frequência. No país também é comum encontrar pessoas trans que começaram a tomar hormônios por conta própria, sem acompanhamento médico —explica o médico.

A jornalista carioca Eugenia Rodrigues, estudiosa do tema e porta-voz da campanha No Corpo Certo, conta que há muitos casos de “destransição” e que já ouviu todo tipo de relato.

—Têm mulheres que começaram (o uso de hormônio) por conta própria, outras foram atendidas em clínicas de identidade de gênero, outras que passaram por uma suposta avaliação com psicólogos, psicanalistas e psiquiatras e têm também mulheres que conseguiram endocrinologistas que forneceram o hormônio, sem pedir laudo nenhum— diz Rodrigues. Segundo ela, a maioria dos casos de “destransição” ocorre em mulheres jovens e lésbicas.

O médico catarinense José Carlos Martins Júnior, referência em cirurgias de adequação sexual em pessoas trans no país e no exterior, já realizou mais de 400 operações. Segundo ele, nenhuma paciente sua se arrependeu. Martins Júnior, no entanto, diz saber de casos de arrependimento, em especial de pessoas que optaram por operar fora do país.

— Se a pessoa for operar na Tailândia, ela consulta uma psicóloga, recebe o laudo, e no dia seguinte faz a cirurgia — afirma.

Direitos garantidos

A legislação brasileira autoriza cirurgias de adequação sexual, como retirada das mamas, extração dos órgãos reprodutores e a construção de genitais, a partir dos 18 anos. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece intervenções cirúrgicas e terapia hormonal desde 2008.

Antes do início de qualquer procedimento, o paciente passa por um acompanhamento multidisciplinar de pelo menos um ano para validar se há, de fato, a “disforia de gênero”. A avaliação requer um perfil médico e psicológico.

Crianças e pré-adolescentes

A transição na infância é para lá de polêmica. A dúvida sobre a identidade é mais comum nas crianças, já que elas tendem a apresentar comportamentos de não conformidade de gênero, independentemente de serem trans. Por exemplo, meninos que gostam de usar vestidos ou meninas que brincam com caminhões.

O bloqueio hormonal é autorizado, com o consentimento dos pais, a partir de quando a criança entra na puberdade. O objetivo é evitar que desenvolva características associadas ao sexo de nascimento, como a menstruação e o surgimento de pelos.

Desde 2012, a Associação Profissional Mundial para a Saúde Transgênero (WPATH, na sigla em inglês) diz que os bloqueadores hormonais são “intervenções totalmente reversíveis”. Mas, em entrevista recente à imprensa estrangeira, Erica Anderson, psicóloga na Clínica de Gênero para Crianças e Adolescentes, da Universidade da Califórnia, disse “não ter certeza” se os efeitos psicológicos são reversíveis. A cirurgiã Marci Bowers, que fez a transição da ativista americana Jazz Jennings e assumirá em 2022 a WPATH, é contrária ao uso precoce de bloqueadores e critica a censura ao debate sobre os procedimentos hoje adotados.

Adolescentes

No Brasil, 16 anos é a idade mínima para o início da terapia hormonal (não confundir com bloqueador hormonal). Alguns efeitos dos hormônios, como crescimento de pelos, no caso do hormônio masculino, e formação das mamas, no feminino, permanecem mesmo após sua suspensão. Por isso, alguns especialistas acreditam que o ideal seria esperar a maioridade legal para iniciar os tratamentos. Saadeh, da USP, discorda.

—Nessa idade, o adolescente já tem uma noção muito melhor de si. Iniciar a transição na adolescência traz diversos benefícios para a saúde mental e social desses jovens — afirma.

A WPATH recomenda que os pacientes que buscam a hormonioterapia sejam examinados para identificar transtornos. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) proíbe a realização de procedimentos hormonais (e também cirúrgicos) em pessoas diagnosticadas com transtornos mentais graves.

Nos Estados Unidos, críticos levantam a hipótese de que crianças e adolescentes com diferentes transtornos ou lésbicas estejam sendo incentivadas a se definir como transgênero. Parte dos médicos, no afã de ser acolhedora, estaria errando a avaliação.

Fonte: Giulia Vidale/O Globo